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Fisco do futuro é on-line e em tempo real

A poucos minutos de caminhada da Praça Vermelha, em Moscou, há um prédio de alta segurança da era soviética, onde fica o Serviço da Receita Federal da Rússia. Do lado de dentro, porém, não há nada de soviético na tecnologia empregada pelo órgão.

A poucos minutos de caminhada da Praça Vermelha, em Moscou, há um prédio de alta segurança da era soviética, onde fica o Serviço da Receita Federal da Rússia. Do lado de dentro, porém, não há nada de soviético na tecnologia empregada pelo órgão.

De pé, em frente a uma imensa parede formada por monitores de vídeo, Mikhail Mishustin, diretor da Receita Federal russa, preparase para fazer uma exibição do que o seu departamento pode fazer. “Onde você se hospedou na noite passada?”, pergunta. Quando respondo, seu pessoal amplia na tela o trecho do mapa onde está o Hotel Budapeste. “Você tomou um café?” Os funcionários então clicam nos recibos de bebidas e alimentos do hotel na noite anterior. “Veja, [o hotel] vendeu três cappuccinos, um expresso e um caffè latte. Um deles era o seu”, declara Mishustin, triunfante. Ele acertou.

Esse é o futuro do serviço de administração fiscal — digital, em tempo real e sem necessidade de fazer a declaração do imposto. As autoridades recebem as notas fiscais de cada transação na Rússia, de São Petersburgo a Vladivostok, em 90 segundos. As informações já ajudaram a expor erros, evasões e fraudes no recolhimento do imposto sobre o consumo da Rússia, o imposto sobre o valor agregado (IVA) do país, o que permitiu ao governo elevar a arrecadação em ritmo superior ao do desempenho geral da economia russa.

O novo sistema é direcionado mais aos lojistas do que aos oligarcas, os bilionários que controlam setores da economia. A Rússia ainda vai mal nos rankings internacionais de corrupção. Está apenas no 138o lugar entre 180 países no índice de percepção de corrupção da Transparência Internacional, em virtude da falta de independência da mídia, do compadrio e da parcialidade do judiciário. Mas a redução da evasão fiscal entre os russos comuns e a descoberta de fiscais corruptos ajudou a elevar a arrecadação e a limpar o sistema.

É exatamente esse tipo de tecnologia que promete “mudar o jogo”, diz Pascal Saint-Amans, diretor do Centro de Gerenciamento e Políticas de Impostos da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), em Paris. Ele acredita que ainda há muito trabalho a ser feito para garantir que a informação digital recolhida pelas autoridades fiscais fique segura e não seja usada para criar um “Grande Irmão e um Estado opressor”.

Há, entretanto, enormes vantagens para as autoridades fiscais na coleta de informações online para garantir que o dinheiro devido seja realmente pago, diz Saint-Amans. “Estamos falando de centenas de bilhões em todo o mundo”, acrescenta. Ter capacidade para rastrear as informações “sempre foi o sonho de qualquer coletor de impostos”.

Seu otimismo contrasta com o mau humor usual em torno da tarefa de cobrar os impostos necessários para financiar os serviços públicos. Em tempos de envelhecimento da população e de demanda cada vez maior por assistência médica, aposentadorias e assistência social, há constantes preocupações quanto à facilidade encontrada pelas gigantes tecnológicas para transferir lucros pelo mundo e evitar os impostos sobre a pessoa jurídica.

No mundo das receitas federais, porém, o sentimento que predomina é a esperança. “Os benefícios da tecnologia para as autoridades fiscais na cobrança de impostos indiretos [como o IVA] podem muito bem superar os problemas que ela gera no sistema de imposto direto [como o imposto sobre pessoas jurídicas]”, disse Chris Sanger, diretor da área de consultoria mundial de tributos na EY.

O sistema fiscal russo, com sua dependência excessiva da arrecadação na área de petróleo e gás e as sérias preocupações com a evasão e fiscais corruptos, estava no ponto certo para passar por uma reforma. Escolhido a dedo pelo presidente da Rússia, Vladimir Putin, para comandar o Serviço da Receita Federal, Mishustin é de formação um especialista em tecnologia, não em políticas públicas. Ele decidiu melhorar a arrecadação russa por meio da adoção e do aperfeiçoamento dos sistemas mais modernos existentes no mundo.

Normalmente, economistas e funcionários públicos aprendem a lidar com a tecnologia, “nós criamos a tecnologia e agora estamos nos tornando economistas”, disse Mishustin.

O IVA foi seu primeiro alvo. Esse tributo tomou o mundo de assalto desde que foi criado pela França, nos anos 50. Hoje, é aplicado em mais de 165 países e representa mais de 20% da arrecadação tributária mundial. Só nas economias avançadas, arrecada mais de US$ 3 trilhões. As duas principais vantagens do imposto são o volume de arrecadação que pode gerar para os governos e sua percepção de resistência a fraudes, em comparação a impostos sobre as vendas como os ainda aplicados nos EUA.

Como é recolhido ao longo da cadeia de fornecimento, e as empresas são capazes de pedir a restituição do imposto que pagaram sobre seus insumos e cobrá-lo em suas vendas, possui um elemento embutido de autoincentivo a sua adoção. Além disso, todos os lados querem ter a documentação apropriada de suas vendas e compras para o caso de caírem na malha fina da Receita Federal, o que, na realidade, raramente acontece.

Há duas áreas, porém, onde o IVA em sido alvo de significativa fraude na maioria dos países. A primeira é quando alguns não pagam o imposto que devem sobre suas vendas e, então, somem deixando as autoridades sem nada. A segunda é quando os clientes varejistas conspiram com os vendedores para comprar bens e serviços (em geral serviços) sem pedir nota fiscal, e o imposto não é cobrado do consumidor final.

A diferença entre o IVA devido e o arrecadado girava em torno a 20% na Rússia antes da reforma do sistema, segundo Mishustin. Em uma economia avançada como a do Reino Unido, a receita britânica estimou essa diferença em 9,1% no período 2017-2018.

Para enfrentar o problema, a Rússia montou dois enormes centros de dados e aprovou leis obrigando as empresas a apresentar todas as notas fiscais entre empresas. Também exigiu que todos os varejistas comprassem novas caixas registradoras, que foram conectadas, de forma segura e direta, aos centros de dados.

Agora, o sistema pode verificar em tempo real cada nota fiscal e garantir que o pagamento da restituição do imposto feito pelo governo esteja realmente ligado às notas, e que as empresas enviaram mesmo o dinheiro às autoridades. Depois, usando inteligência artificial, o sistema pode rapidamente encontrar padrões nos dados, assim como empresas que tenham muitos elos faltando. Dessa forma, as autoridades podem se concentrar em determinadas empresas para fazer auditorias fiscais. Como tudo está conectado, também podem detectar fiscais com níveis de arrecadação muito baixos nas empresas pelas quais são responsáveis.

A diferença de 20% no IVA agora caiu para 1%. Além disso, como a arrecadação tornou-se mais eficiente, o número de notas fiscais decolou. Entre 2014 e 2018, o valor arrecadado com o IVA subiu 64%, em comparação ao aumento nominal de 21% no consumo doméstico no mesmo período.

O sistema russo, depois de ter permitido acesso às informações sobre meu café no hotel, é capaz de, com apenas alguns cliques, mostrar as vendas e preços de todos os cafés vendidos no país ou de qualquer outro bem ou serviço. O sistema usa a inteligência artificial não apenas para identificar varejistas ou restaurantes que possam estar vendendo menos do que o esperado por meio de transações em dinheiro não contabilizadas no caixa, mas também para ler as notas e dar estatísticas nacionais.

“Como você mede a inflação no Reino Unido?”, pergunta Mishustin. Depois de ouvir uma explicação de como um exército de pessoas com pranchetas checam os preços dos bens e serviços uma vez por mês por todo o Reino Unido, ele grita: “Besteira! Isso é besteira. Podemos ver tudo que é comprado em qualquer lugar”, diz Mishustin, que está mostrando o sistema pela primeira vez a uma organização de mídia internacional.

As autoridades russas querem estender a arrecadação por vias tecnológicas para a economia informal, na qual trabalhadores autônomos de baixa renda — por exemplo, babás ou trabalhadores temporários — ganham pequenas quantias que raramente são analisadas, embora esses pagamentos estejam sujeitos ao imposto de renda. Os autônomos que se inscrevem num novo aplicativo de celular pagam 4% do faturamento em serviços, deduzido automaticamente de sua conta bancária.

A adesão vista até agora neste ano superou as expectativas, uma vez que ela garante que as autoridades não irão atrás das pessoas por impostos não pagos.

“A maioria das pessoas quer estar limpa”, diz Mishustin, que assinou acordos como empresas como Uber e AirBnB para deduzir pagamentos diretamente por meio do aplicativo. “Queremos estar inseridos no ecossistema nacional de contribuintes e, então, não incomodar mais.”

A Rússia está na vanguarda com o seu sistema de gerenciamento de impostos, mas não é o único país que está buscando usar dados em tempo real para combater a fraude e a evasão fiscal. Muitos outros agora vêm conectando seus sistemas de fiscalização às caixas registradoras, especialmente onde havia muita evasão no passado.

Portugal, um dos primeiros a fazê-lo, agregou um incentivo extra para que os consumidores paguem o IVA e para garantir que os varejistas façam o mesmo. Quando os consumidores adicionam seu número fiscal pessoal a uma nota eletrônica, o número é inserido em uma loteria mensal que dá prêmios substanciais, como carros novos.

Rita de la Feria, professora de legislação tributária na Universidade de Leeds, diz que consumidores de produtos ou serviços com histórico de sonegação do IVA, como restaurantes, podem ter uma dedução de 15% do IVA pago em sua declaração anual de imposto de renda. “Isso mudou a mentalidade e a forma como a sociedade vê a informalidade”, diz. “Agora, em Portugal, os varejistas perguntam rotineiramente se você quer adicionar seu número fiscal em qualquer compra.”

Em muitos países nórdicos, as autoridades têm um volume suficiente de dados verificados para entregar as declarações já preenchidas e pedir aos contribuintes pessoas físicas apenas para aprová-las, diz Sanger, da EY. Em vez de indignação com um Estado Grande Irmão, “a dificuldade é fazer as pessoas se importarem em checar” as informações.

Esses exemplos, contudo, não solucionam grandes preocupações quanto à privacidade e proteção de dados. Em Portugal, diferentemente da Rússia, se as pessoas acrescentam seu número fiscal pessoal às notas fiscais, o Estado pode ver tudo o que elas ganham e tudo o que gastam. “As autoridades fiscais têm informações sobre literalmente tudo o que você faz”, diz a professora De la Feria, embora ressalte que a preocupação pública inicial foi apaziguada pela inexistência de vazamentos e pela ideia de que isso agora simplesmente faz parte da prestação de contas sobre os impostos.

É nesse ponto que a OCDE pretende elaborar padrões básicos para que, pelo menos nos países participantes, os dados continuem seguros e não sejam mal utilizados. Ainda assim, segundo Saint-Amans, as evidências não indicam que o público esteja tão preocupado assim com a privacidade. “Lembre-se, as pessoas vêm dando dados de graça para o Google, a Amazon e outras grandes empresas de tecnologia”, acrescentou.

Em alguns países — especialmente onde não há uma crise de arrecadação grave o suficiente para forçar mudanças rápidas — há receios se público vai aceitar a ideia de que novas tecnologias tão intrusivas por parte do Estado são necessárias, uma vez que o sistema de arrecadação fiscal já funciona razoavelmente bem.

Edward Troup, diretor da receita britânica até 2018, diz que em países como o Reino Unido pode ser difícil implementar um sistema tão generalista, que dá pouco ou nenhum espaço para casos mais complexos. “Democracias mais maduras encontram mais dificuldade do que a Rússia ou a China poderiam encontrar para tratar com aspereza os casos que são exceções — tanto pela falta de disposição em aplicar uma mão forte quanto pela expectativa social de tratamento humano para os casos difíceis”, diz.

Ainda assim, ele vê a tecnologia como uma resposta de longo prazo para uma arrecadação de impostos mais eficiente. Sobre o programa “digitalizando os impostos”, que exige apenas das empresas a entrega das declarações de IVA eletronicamente, Troup disse que, uma vez que esteja em vigor, ele pode ser integrado a caixas registradoras e a sistemas de venda bem administrados que alimentem de dados a receita federal britânica diretamente.

“Acredito fortemente que essa seja a solução, mas gostaria de evitar um lançamento com falhas que acabe atrasando o progresso em décadas”, disse Troup.

Se esses problemas forem resolvidos e muitos países adotarem uma arrecadação e sistemas de gerenciamento tributário automáticos e digitais, o próximo passo seria melhorar a eficiência dos sistemas tributários de formas atualmente consideradas impossíveis, diz De la Feria. A maioria dos países tem sistemas de IVA terrivelmente ineficientes porque, por exemplo, têm muitas isenções e alíquotas zero para itens como alimentos ou roupas de bebê, que são justificadas como auxílios para as famílias mais pobres.

Trata-se de uma redistribuição muito ineficiente, argumenta a professora, porque “deixamos de tributar um monte de pessoas que poderiam pagar o IVA nesses itens e [porque] sabemos que a grande maioria do consumo de alimentos, por exemplo, é feita por clientes de alta renda”.

Quando os números fiscais individuais de uma pessoa forem casados automaticamente com as notas fiscais, De la Feria vislumbra um sistema em que as famílias pobres receberiam automaticamente desconto no IVA por meio da seguridade social. “Dessa forma, você consegue uma proteção direcionada para famílias de baixa renda.”

Pagamentos de impostos individualizados e automatizados de acordo coma renda familiar ainda estão no reino da ficção científica. Mas a necessidade de aumentar a arrecadação sem aumentar os impostos é um problema grave, que é enfrentado por muitos países e só vai aumentar, uma vez que o envelhecimento das sociedades intensifica a pressão sobre os orçamentos públicos. Embora as autoridades fiscais ainda não estejam vendo atualmente em que seus cidadãos gastam todo seu dinheiro, a tecnologia para isso já existe e vem se disseminando rapidamente pelo mundo.

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